sexta-feira, 31 de maio de 2019

Psicologia Positiva e Cultura

A Psicologia Positiva, criada em 1997 pelo psicólogo Martin Seligman, é a ciência que estuda o bem-estar.

Tomando como fundamento o estado de fluxo descoberto pelo psicólogo Mihaly Csikszentmihalyl, Seligman adicionou as contribuições da psicologia experimental e da filosofia. Esse ramo da psicologia se afastou bastante da psicanálise, pois o foco não está em doenças mentais negativas e na lembrança das coisas ruins do passado. 

O foco da Psicologia Positiva está na saúde mental, na expressão criativa e em todas as coisas positivas associadas ao bem-estar. Se expressar criativamente, por exemplo, não é um desejo exclusivo dos artistas, é o desejo de qualquer pessoa. 

O bem-estar intelectual é um dos componentes mais subestimados e mais relevantes do bem-estar, por isso as atividades culturais tem um papel decisivo na nossa saúde psíquica. As atividades culturais servem para a fruição artística, a instrução e o entretenimento

Neste artigo colocarei ênfase na conexão que existe entre a escolha de boas atividades culturais e o nosso bem-estar, na perspectiva da psicologia positiva.

A Busca pelo Estado de Fluxo (flow)

Segundo a Psicologia Cognitiva, coisas familiares são mais facilmente processadas em detrimento das novidades que requerem mais processamento cerebral. 

Além disso, a cognição e a emoção são inseparáveis. Nós conhecemos as coisas e as avaliamos emocionalmente ao mesmo tempo.

Emoções associadas à cognição:

Estímulos novos\difíceis      ---> Emoção negativa
Estímulos familiares\fáceis  ---> Emoção positiva

A saturação de estímulos familiares e pouco desafiadores, gera o tédio e a repulsa. E a superexposição a estímulos novos, muito desafiadores e que frustram todas as nossas tentativas de resolução, gera a angústia.

Portanto, devemos evitar tarefas fáceis demais que podem nos entediar e tarefas difíceis demais que podem nos angustiar. Esse equilíbrio de estímulos ajuda a gerar o que Mihaly Csikszentmihalyl denominou de estado de fluxo. 

*Componentes do Estado de Fluxo

1. Clareza das metas e feedback imediato
Como visto em muitos esportes ou artes. Um tenista sabe exatamente o que é necessário para ganhar um jogo. As regras são claras. Em cada ação, sucesso ou fracasso é imediatamente percebido. Esportes e artes são, portanto, atividades clássicas de fluxo.

2. Um alto nível de concentração num campo limitado (foco)
Isso permite que a consciência de uma pessoa mergulhe profundamente na atividade. Em contraste, há muitas vezes demandas caóticas e contraditórias na vida cotidiana que podem causar confusão e insatisfação.

3. Equilíbrio entre habilidades e desafios (equilíbrio cognitivo)
A dificuldade de uma tarefa deve fornecer o grau certo de desafio à capacidade de uma pessoa. Uma música muito difícil deixará um músico frustrado e desapontado, um muito fácil leva ao tédio e à rotina. Então, o fluxo ocorre na faixa entre "muito" e "muito pouco".

A relação entre requisitos e capacidades

4. O sentimento de controle
A característica do fluxo é a sensação de maior controle sobre as ações de uma pessoa. A expressão "controle" é facilmente mal interpretada. Pode afastar muitas pessoas por sua associação com dominação compulsiva ou atenção nervosa. O controle no fluxo não possui nenhuma dessas qualidades. É um estado de segurança e relaxamento com a completa ausência de preocupação: o paradoxo conhecido no zen-budismo como "controle sem controle".

5. Esforço
Fluxo envolve flexibilidade e facilidade; tudo funciona harmoniosamente e sem esforço. Uma partida de tênis ou uma performance solo no palco podem parecer extenuantes do lado de fora; no entanto, se de fato o jogador estiver em fluxo, ele não experimentará nenhuma tensão em particular. A atividade é executada sem problemas, guiada por uma lógica interna. Todas as decisões necessárias surgem espontaneamente das demandas da atividade sem qualquer reflexão deliberada.

6. Uma percepção alterada do tempo
Em um estado de fluxo profundo, a percepção normal do tempo está em espera. O tempo pode se sentir condensado - duas horas parecem dez minutos, ou expandidas - segundos parecem minutos. É por isso que o modo de fluxo é chamado "atemporal".

7. A fusão da obra e do autor
O envolvimento completo cria um estado no qual não há espaço para preocupação, medo, distração ou ruminação autoconsciente. Os artistas não se sentem separados de suas obras; eles são unos com suas criações. Esse sentimento de unidade pode se expandir para o ambiente da pessoa (natureza), bem como para todo um grupo de pessoas trabalhando juntas (fluxo de equipe).

8. A qualidade autotélica das experiências de fluxo: IROI
Do autos grego - auto e telos - objetivo. Não apenas alcançar o objetivo de uma atividade é gratificante, mas a atividade em si é gratificante. O fluxo é, portanto, "Retorno Imediato do Investimento".

*Fonte: 

Ler as recomendações e por em prática esses oito componentes é a melhor maneira de nos expressarmos criativamente e colhermos os benefícios para atingir o bem-estar. Conforme Seligman, o estado de fluxo deve ser buscado em nossas atividades culturais, sejam elas mais relacionadas com o consumo ou a produção de cultura.

Pra quem acha muito complicado tudo isso, posso resumir de uma maneira simples (depois volte para ler sobre os oito componentes):

Buscar o estado de fluxo é buscar fazer melhor o que você já faz bem. É se dedicar a uma tarefa que você faz muito bem, jogar futebol de mesa, jogar Xadrez, socar um saco de areia, praticar artes marciais, fazer tricô,  artesanato e etc. A busca também significa não ficar preso nas tarefas que você faz bem e encontrar tarefas mais difíceis e desafiadoras.

A busca em si já é gratificante, independente de conseguir atingir o flow ou não, pois estamos criando condições favoráveis e semeando o terreno para o flow.

Logo, o modo que usamos o nosso tempo livre e a seleção das atividades culturais que valem a pena, é uma parte fundamental dessa busca. Devemos prestar atenção nisso no dia a dia.

Como contraexemplo, o torpor intelectual experimentado por pessoas envolvidas demais com as banalidades do cotidiano e do celular é o contrário do flow.

Quando você surpreende um conhecido de cabeça baixa teclando na tela do celular, mordendo a língua e fazendo caretas e ele diz "Nham?", você não acha que ele está distraído "porque faz o que gosta". 

Ele está distraído e alienado da realidade, porque está experimentando um torpor gerado pela queda de todas as suas habilidades cognitivas mais nobres, o hábito de experimentar esse torpor com frequência se transformará em demência.

Memória fraca, falta de concentração, incapacidade de ler textos longos, raciocínio lerdo, falta de lógica, incapacidade de interpretar as situações, enfim, uma overdose de apatia e tédio que não cessa nunca.

O equilíbrio cognitivo na atividade cultural

Como vimos, o equilíbrio entre a novidade e a familiaridade é um dos componentes do estado de fluxo. 

O equilíbrio cognitivo é expresso pela recomendação:
Devemos evitar tarefas fáceis demais que podem nos entediar e tarefas difíceis demais que podem nos angustiar. 

A cultura pop é carregada e saturada de coisas familiares, coisas que já vimos antes, repetidas a exaustão. É uma arte onde há pouca inovação.

Isso significa que o consumo exagerado de cultura pop nos afasta do estado de fluxo. Se fazemos muito isso, devemos ligar o alerta vermelho e modificar o nosso comportamento.

Pesquisar um assunto em particular ou tema, como fazíamos nos primeiros anos do ensino fundamental é uma atividade positiva para a cognição, um comportamento que devemos agradecer aos nossos professores e levar conosco pelo resto da vida.

Por exemplo, podemos construir uma blindagem contra a saturação da música pop, escutando as principais obras dos grandes nomes da música clássica ou então pesquisando em profundidade a música underground.

Os estímulos novos\difíceis também podem gerar emoções positivas sob certas circunstâncias. Os momentos eureca, a conhecida interjeição de surpresa a-ha, sacadas, insights e afins promovem a ativação do sistema de recompensa no cérebro, marcando positivamente tarefas complicadas. Vale a pena tentar digerir intelectualmente algo mais complicado do que você está acostumado, pois isso despertará emoções positivas caso for bem sucedido, decida no que deve insistir primeiro para colher os frutos mais rapidamente.

Vencer desafios cognitivos amplia as nossas habilidades cognitivas e nos faz desejar novos desafios, num ciclo de retroalimentação positiva.

Na música underground, por mais estranhas que sejam as músicas, vale a regra "quanto mais escuto, mais eu gosto".  A medida que esse tipo de  música se torna mais familiar para o ouvinte, ela se torna também mais apreciada.

A razão nos diz que devemos pelo menos tentar assimilar coisas mais difíceis, que são apreciadas por poucas pessoas, pois a mídia já nos bombardeia sem trégua com coisas de fácil assimilação. É um óbvio ululante, mas a maioria das pessoas ainda não está convencida disso.

O "nadar contra correnteza" e o "afastamento da manada" são metáforas da vida selvagem bem convenientes para a vida urbana repleta de poluição digital e de dissonâncias cognitivas embutidas no papo furado online. Uma dissonância é quando você concorda com algo que sabe ser errado numa conversa coloquial enquanto deve seguir as normas formais no ambiente acadêmico ou no trabalho.

Ironicamente, o que é ruim em sentido literal na vida selvagem, é bom em sentido figurado na vida urbana. 

-->Na cidade, nade contra a correnteza e se afaste da manada.

Buscar o flow quando estamos em atividades culturais é diversificar o leque de opções, se permitir ler desde histórias em quadrinhos leves até livros complicados de ciências. Não devemos ficar presos em loop, numa monomania como ver maratonas de seriados na Netflix.

Alternar entre a Netflix e o Whatsapp é um sintoma da tendência do cérebro em se fixar em padrões familiares de mínima ação, para buscar gratificação imediata.

Experimente ver um seriado da Netflix mais complicado do que o habitual, com um ambiente geográfico menos conhecido ou exótico, com uma trama mais elaborada ou com um assunto mais denso que exige mais atenção.

Devemos sempre empurrar nossos limites mais para longe, tentando aprender coisas novas, para explorar estímulos mais desafiadores e menos familiares.
E além da Cultura o que mais pode ser feito com nosso tempo livre?

A prática exclusiva de atividades hedonistas, como festas, viagens para paraísos naturais, culinária extravagante, consumo de bebidas alcoólicas e drogas psicoativas em geral é uma atividade contraproducente e até estressante, segundo a Psicologia Positiva. 

É apenas o vácuo emocional, disfarçado como boêmia.

O Perigo das Multitelas

Fazendo uma síntese do que foi escrito até aqui, concluímos que não devemos gastar o nosso tempo livre somente desopilando se entendermos desopilar como nos expor a estímulos pobres e repetitivos de nossas telas. 

A passividade conformista de seguir esse padrão, certamente terá o efeito oposto ao desejado, produzindo pessoas ansiosas, nervosas e cada vez mais exigentes com respeito ao entretenimento oferecido.

Assim como uma droga, memes, vídeos amadores, virais e outros subprodutos culturais duvidosos exigem cada vez mais uma dose maior de mesmice fácil de entender, para surtirem o mesmo efeito. 

Conforme a Psicologia Positiva, tentar desopilar sem viver o estado de fluxo, meramente nos refugiando na futilidade de estímulos fáceis, não passa de uma receita certa para a infelicidade. 

Se deixamos o mundanismo descerebrado a nossa volta nos dominar teremos uma vida sem desafios, estaremos próximos dos estados inferiores do gráfico, da apatia e do tédio. Só conseguimos sair dessa inércia que nos faz mal, quando resolvemos nos autodesafiar.

Para alcançar o bem-estar não é obrigatório sermos artistas famosos e geniais, nem atletas de alto desempenho, jogadores de Xadrez excepcionais ou escritores influentes, basta nos dedicarmos a algo que gostamos e fazemos bem, enquanto investimos paralelamente em boas atividades culturais que promovem o equilíbrio cognitivo.

Para saber mais:

Resenha:
Scorsolini-Comin, F. (2012). Por uma nova compreensão do
conceito de bem-estar: Martin Seligman e a Psicologia
Positiva. Paidéia (Ribeirão Preto), 22(53), 433-435.
doi:http://dx.doi.org/10.1590/1982-43272253201315

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-863X2012000300015

Livros:
A Nova Ciência da Mente, Howard Gardner (Editora Edusp)
O Livro da Psicologia, Globo Livros

Documentário:
Como o Cérebro Cria - Netflix

Site:
Flow Skills
https://www.flowskills.com

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