terça-feira, 7 de maio de 2019

O Guardião

Ouve ao longe o trotar de um cavalo. Seus ouvidos supersensíveis são capazes de perceber o bater de asas de uma borboleta no outro lado da floresta. Ou saber quando os filhotes das aves quebram a casca dos ovos para nascer. Conhece o mais delicado som, mesmo durante uma tempestade.

Qualquer ser vivo ficaria confuso com a infinidade de ruídos que existe dentro de uma floresta, mas para ele não havia problema. Da mesma forma que um maestro habilidoso identifica cada som dos diversos instrumentos da orquestra, ele consegue esta façanha multiplicada por um milhão de vezes, selecionando o que pretende ouvir através do seu sofisticado aparelho auditivo.

O cavalo vem num trote lento. Possivelmente o cavaleiro teme ser surpreendido e examina com cuidado o terreno antes de avançar. Sempre soube que este dia chegaria. Ainda se formava dentro do ovo e o seu fim já lhe tinha sido revelado. Algumas criaturas não tinham ideia que morreriam. Outras, como uma maldição recebida com a vida, sabiam, mas não quando aconteceria.

Os da sua espécie, por alguma razão, só compreendida pelo Criador, sabiam como e quando chegaria o fim. Aliás, muitas coisas ele não entendia sobre as intenções do Criador. Por que existiam coisas más? E por que as coisas boas um dia acabavam?

Imagina então um cavalo branco com arreios de prata brilhando ao sol. Assim como brilham as águas do lago a sua frente, refletindo os raios de luz em sua tranquila ondulação.

Amanhece. Havia passado a noite ali, no lado de fora da caverna. Acomodado sobre uma imensa pedra que lembra o ninho onde nasceu. Era seu lugar preferido na floresta para deixar o pensamento voar distraído e meditar sobre como as coisas foram e como serão depois das mudanças que estão para acontecer.

Lembrou-se da primeira explosão, do primeiro clarão. Tinha acabado de sair do ovo junto com outros da sua linhagem. Foram escolhidos para testemunhar o início de todas as coisas.

Era a noite anterior ao princípio dos tempos. O espírito do Criador pairava então sobre as águas. Ficaram assustados com a violência da energia que fazia a matéria brotar do meio do nada. Mas o Criador os acalmou e desde então nunca mais sentiu medo.

Ouviu a ordem para que existisse luz. O Sol e a Lua nasceram no horizonte e as estrelas surgiram no céu. Depois o Criador deu outra ordem e as águas se separaram. Ficaram sendo as de cima do firmamento e as debaixo do firmamento.

As debaixo se juntaram a um canto e apareceu a terra seca.

O chão tremeu e o solo fez rugas imensas que subiram até o alto formando a crista das cordilheiras com sua neve eterna. Depois surgiram as plantas, as árvores floriram e vieram os animais. Multiplicai-vos, disse o Criador, e os seres vivos povoaram a terra.

Tudo ficava bom e o Criador estava satisfeito.

Finalmente veio a humanidade. Lembrou com ternura daquele dia, que era o sexto da criação. Tudo que tinha sentido até aquele momento, enquanto presenciava a Criação do universo, não significava nada perto do que experimentou então. Conheceu o amor. Amou aqueles seres desde o princípio. Pensar neles aquecia o seu coração.

Estica as asas, ronrona satisfeito e fecha os olhos. Uma brisa suave refresca suas escamas.

O som do trote do cavalo se aproxima. Pode agora imaginar o cavaleiro com armadura de oficial do exército romano. O suor descendo pela testa, coração batendo acelerado. Sente uma ligação indissolúvel do coração do guerreiro com o seu próprio coração, como se ambos tivessem sido formados a partir de um mesmo músculo e preparados para bombear o mesmo sangue.

Quando a obra do Criador ficou pronta ele foi enviado para cuidar daquela floresta.

Todo dia sobrevoava as árvores e observava os animais, os rios e as plantas. Cuidava para que nada se desarranjasse. Era sua missão, manter tudo equilibrado e perfeito. Às vezes livrava um pequeno roedor das garras de um lobo. Em outras deixava o predador se alimentar. Tudo para manter o tamanho de cada espécie de acordo com o que lhe fora ordenado.

Também tinha que manter os humanos afastados da floresta. Seguidamente eles tentavam uma invasão e logo os afugentava com voos rasantes, cuspindo fogo e rugindo como um trovão. Não os feria, não queria lhes fazer mal. Apenas os assustava para proteger a floresta. Eles o chamavam de besta. Não se aborrecia, sabia que era uma das mais perfeitas criaturas que já existiram. Um dos poucos que tinham o privilégio de olhar a face do Criador.

Lembrou do sonho que tivera na noite anterior. A floresta se transformara em fazendas de criação de animais e plantações que se perdiam no horizonte. Os mesmos animais e as mesmas plantas se repetindo lado a lado numa imagem que o deixava atordoado. Muitas chaminés fazendo fumaça e pessoas caminhando ansiosas em todas as direções. Sabia que o futuro seria assim, quando os humanos fossem deixados por sua própria conta com a responsabilidade de cuidar da Criação. Seriam tempos sombrios até aprenderem a lição que lhes era reservada.

O cavaleiro traz um escudo com a figura de uma cruz. No alto do capacete surgem plumas e a capa vermelha, presa ao pescoço, esvoaça com o movimento do cavalo. Na mão direita uma lança ameaçadora.

Não reage e nem tenta fugir. Experimenta sentir a paz da missão que termina. É o último guardião da última floresta preservada do mesmo jeito desde o dia da criação.

Sente a poeira de terra levantando e os pedregulhos arremessados pelas patas da montaria que aumenta a velocidade ao aproximar. O cavaleiro imagina que o surpreende dormindo e quer aproveitar a ocasião.

A vida em torno parece suspensa, aguarda o resultado daquele momento em que uma outra era começa. O vento para de soprar e as águas do lago ficam duras como um espelho. Nuvens escuras cobrem o sol.

Sente que os cascos do cavalo pisam suas asas. Não se mexe. Está na hora.

O aço frio da lança perfura sua carne, penetrando através do único ponto vulnerável da sua carcaça, entre a base superior das asas. Percebe que também o cavaleiro sente no peito a dor do ferimento que provoca. O coração é atingido. O guerreiro apeia e se aproxima. Traz nos olhos a tristeza de quem cumprira um destino que não escolheu.

Depois a vida se aquieta. Vem o silêncio. Antes de tudo desaparecer sente a mão, que há pouco segurava a lança, afagando sua cabeça.

Um comentário:

  1. Li uma vez e repeti a leitura e não percebi quem era o Guardião.

    A fábula se presta para a divagação filosófica e a discussão de questões existenciais como a mortalidade.

    Excelente conto, parabéns.

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