terça-feira, 18 de junho de 2019

Futurismo: Magos vs. Profetas

Quando escrevo futurismo não me refiro ao movimento artístico do século 20, estou me referindo a atividade intelectual de tecer previsões e imaginar os costumes e o cenário tecnológico em algum momento no futuro. Livros de divulgação científica que tecem essas especulações e fazem previsões mais ou menos embasadas na ciência da atualidade também são livros futuristas.

A obra do historiador, Yuval Noah Harari, colocou em perspectiva o trajeto evolucionário do Homo Sapiens, a História da humanidade, os feitos tecnológicos e as instituições, projetando novas conquistas científicas e costumes para a civilização no futuro.

O futurismo baseado em história, antropologia, biologia, psicologia, física, geopolítica e disciplinas afins e o melhor futurismo da ficção científica quase se equivalem.

Brevemente, podemos resumir o impacto da obra de Harari na sociedade de forma metafórica: Quanto mais conhecimento temos de uma profecia apocalíptica, mais podemos evitar a sua realização.

Segundo esse pensamento, devemos informar e alertar as massas dos perigos envolvidos na ciência de ponta que pretende reescrever a natureza humana com tecnologia. 

O conteúdo pessimista da obra de Harari, nos lembra os clichês das histórias de ficção científica, dos cientistas loucos conspirando com déspotas para dominar o mundo.

O psicólogo cognitivo Steven Pinker, o nêmesis intelectual de Yuval Harari, trilha um caminho oposto, louvando os grandes avanços científicos e as promessas da ciência. Em sua obra "O Novo Iluminismo", ele mostra uma farta coleção de indicadores de progresso e argumentos embasados, para propor cenários no futuro que se diferenciam dos cenários mais sombrios, propostos por Harari.

O embate entre o futurismo de Steven Pinker e Yuval Harari, manifesta, respectivamente, a mesma oposição entre o estilo literário otimista de Julio Verne e o pessimista de HG Wells. 

No século 20, essa oposição literária, estabeleceu um critério para perfilar todos os escritores de ficção científica em duas linhas básicas, mais na linha otimista de "Verne" ou mais na linha pessimista de "Wells".

Vamos usar esse critério, para classificar os dois tipos de intelectuais futuristas. Os magos, otimistas versus os profetas, pessimistas.

Uma harmonia entre eles seria o desejável do ponto de vista filosófico. Portanto, neste artigo apresentaremos uma conciliação dialética entre magos e profetas.


Yuval Noah Harari, o Profeta

Por maiores que sejam as qualificações e as credenciais de qualquer autor, é quase impossível tecer argumentos sobre o futuro da humanidade sem recair em algum tipo de ficção científica, mais ou menos embasada na realidade.

Só que Harari é historiador e não escritor de ficção científica. O teor do discurso adotado em Homo Deus é ainda mais crível do que uma obra de ficção científica, pelo fato do autor ser um historiador. Além disso, a obra é demasiado alarmista, pois aposta no surgimento de um mercado sombrio de tecnologia que não poderia ser detido e arrastaria a humanidade inteira para o mesmo abismo.

Não temos dúvida que a ética não consegue acompanhar a evolução da tecnologia, porém não podemos ter certeza que (todas) as empreitadas que se voltam contra os valores humanos serão bem sucedidas.

Nos últimos meses, as notícias parecem dar razão a Harari, como no caso da edição de DNA realizada pelo cientista chinês He Jiankui. 

O tempo vai nos dizer se essa vista grossa para assuntos éticos se tornará lugar comum na comunidade científica. Pela recepção truculenta que o cientista teve pelas autoridades chinesas, tudo indica que não.

Não que devemos ser condescendentes com pesquisas científicas como edição de DNA ou o desenvolvimento de úteros artificiais que ocultam problemáticas tão assustadoras que lembram a Ilha do Dr. Moreau de H.G. Wells. Apesar do confete que o cidadão comum joga nessas pesquisas, através dos likes em sites de notícias e sites de divulgação científica, todo cuidado é pouco quando o assunto envolve gestar vida numa máquina.

Por exemplo, um útero artificial poderia ser usado para viabilizar híbridos animais e humanos geneticamente editados para atingirem a fase fetal. A junção de edição de DNA e útero artificial é a tecnologia que todo cientista maluco do século 21 e seu fiel ajudante Igor desejavam.

O projeto Gilgamesh, a síntese da medicina regenerativa, engenharia genética, nanotecnologia e vida artificial que busca conceder imortalidade ao Homo Sapiens é sem dúvida umas das previsões mais sombrias de Harari.

Na mitologia grega, Prometeu criou os seres humanos mortais e sem nenhum dom especial, mas para equilibrar as coisas com as outras criaturas, roubou o fogo dos deuses e deu de presente ao homem.

Conceder imortalidade aos seres humanos seria uma hybris mais radical do que a ousadia de Prometeu. No contexto da obra de Harari, os custos sociais e as consequências imprevisíveis da busca pela imortalidade, seriam o equivalente  à abertura de outra caixa de Pandora, que  no mito grego, libertou todas as mazelas da humanidade.

Disfarçada numa aura angelical de busca por saúde, o projeto Gilgamesh pode envolver coisas mais tenebrosas que tráfico humano de órgãos e objetificação dos seres humanos mais pobres, que se tornarão menos do que as pessoas são hoje nas castas mais baixas da Índia.

Tudo nos leva a crer que o uso de tecnologias apocalípticas são exceções, pois não teriam tempo de serem a regra, é como apertar o botão do Armagedom. Se o botão fosse pressionado, a história da humanidade se tornaria a história de algum filme distópico e apocalíptico que já vimos na TV. 

Pessoalmente, não acredito no Armagedom contínuo e suave proposto pelo futurismo a la HG Wells de Harari, com o ser humano sendo dissolvido e integrado aos poucos na sua própria tecnologia, com consequências desastrosas e irreversíveis para nossa espécie.

Steven Pinker, O Mago

E como Pinker sugere que será o nosso futuro? 
O pensamento do cientista cognitivo Steven Pinker fornece um contraponto elucidativo.

Seguindo o futurismo otimista de Julio Verne, Steven Pinker prevê um futuro mais utópico, onde as benesses da ciência atingem gradualmente todos os estratos da sociedade e os exageros da ciência são coibidos por ideais iluministas.

Os que negam que as mudanças climáticas são causadas pela ação do homem fazem parte da turma dos alarmistas tecnológicos que querem assustar as pessoas com respeito a novas tecnologias. Não é coincidência que essa mesma turma forneça o selo de tecnologia segura e inofensiva para os últimos modelos de celular no mercado.

Qual o interesse em assustar o povo com respeito as  novas tecnologias? 

Investir no conhecido (celulares\dispositivos móveis) gera mais dinheiro do que investir no desconhecido, a tecnologia que dá lucro hoje vale mais do que as promessas da ciência básica. 

A maioria dos governos não se importam com os malefícios do celular para a educação das crianças. Com exceção da França, poucos países proibiram os celulares nas escolas. Ironicamente, nos EUA, no Vale do Silício, crescem as escolas "sem telas" construídas especialmente para o ensino dos filhos dos tecnólogos e executivos.

Steve Jobs imaginou o cenário em que seus produtos não seriam usados apenas pelos geeks, porém não imaginou que a massificação do mercado e a banalização do acesso aos dispositivos móveis levaria ao uso indiscriminado por parte dos leigos em tecnologia, bem como  os analfabetos funcionais e os analfabetos propriamente ditos.

Celulares e aplicativos de mensagem podem servir para que "cidadãos" de países do terceiro mundo se sobreponham ao Estado e executem pessoas à margem da lei, baseados em evidências falsas de fofocas e boatos. Vivemos numa época em que os boatos  do cotidiano se espalham mais rápido do que a divulgação das últimas descobertas científicas (finalidade original da internet).

O lado negativo da tecnologia existe, mas para Pinker o reforço da educação de qualidade nos moldes dos países escandinavos, pode diminuir esse problema.

Conciliação entre Magos e Profetas

Enquanto Yuval Noah Harari fez o diagnóstico da "doença" enunciada na metáfora do projeto Gilgamesh e seus congêneres, Steven Pinker nos receitou um bom "remédio": Ideais iluministas.

A cura dessa doença chamada progresso a qualquer custo, só pode ser efetiva mediante a colaboração de todos nós. Somente através do ceticismo saudável podemos impedir o fanatismo militante e irracional, seja no sentido contra ou a favor de qualquer inovação tecnológica.

Nossa capacidade de prever o futuro é limitada. Imaginar e divulgar futuros distópicos e assustadores, como fazem Yuval Harari e outros intelectuais, talvez seja uma maneira didática de modular a hybris humana e o desejo de poder típico da sociedade pós-digital. 

O primeiro alerta veio de Frankstein, de Mary Schelley. Quem sabe Homo Deus não seja também um romance de ficção científica sobre uma história que nunca irá se concretizar? Assim esperamos.

Já Steven Pinker, em O Novo Iluminismo, focou em nosso presente civilizado, contextualizando com as barbáries do passado e encontrou uma forma eficaz de destacar o que funcionou e funciona até hoje. Devemos manter os valores humanos e a razão iluminista a serviço da coletividade, como baluartes contra os desvios éticos da ciência e o alarmismo tendencioso das políticas globais.

Para saber mais:

Sapiens, Yuval Noah Harari
Homo Deus, Yuval Noah Harari
O Novo Iluminismo, Steven Pinker

The Wizard and The Prophet (John Faithful Hamer)
https://quillette.com/2018/03/18/wizard-prophet-steven-pinker-yuval-noah-harari/

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