segunda-feira, 20 de julho de 2020

Um Multiverso Epistemológico

Assim como a Lógica, a Matemática é um corpo de conhecimento composto por verdades necessárias.  Para cada verdade matemática, não podemos simplesmente imaginar arbitrariamente "um outro jeito", como afirmar na base decimal que 1+1=3, por exemplo. Porém, na base binária podemos afirmar que 10+10=100 sem incorrer em nenhum erro. A palavra-chave aqui é base de numeração, qual o sistema de contagem que escolhemos para interpretar os símbolos.

Na matemática, existem critérios para manter as convenções e critérios para estipular novas convenções, objetivando a construção de estruturas mais complexas. Podemos enunciar a proposição "Por um ponto fora de uma reta dada passa mais de uma paralela a essa reta" e construir a geometria hiperbólica em oposição a geometria euclidiana familiar, pois com a inclusão do novo axioma, mantemos um sistema axiomático formal consistente.

Na ciência física, a ideia de multiverso nos diz que as supostas arbitrariedades que existem nas leis da física permitem outros universos, com outras leis e outras constantes da natureza, incluindo outros tipos de matérias exóticas e campos de força.  

As verdades arbitrárias da Física parecem que são diferentes das verdades necessárias da Matemática e isso tudo pode ser fruto de uma única ilusão.

Num primeiro momento, parece aceitável que mudanças mínimas no nosso universo podem produzir um universo similar ao nosso ou outros universos bem diferentes se realizarmos mudanças mais significativas. Agimos como se tivéssemos o conhecimento e o poder de projetar universos com o puro pensamento, como se o universo físico fosse um universo de RPG.

Vamos ser céticos neste ensaio, vamos entender que a arbitrariedade mencionada é fruto de uma ilusão. O físico Eugene Wigner tem uma visão mais "pé-no-chão" sobre o assunto, pois ele aceita o mistério da efetividade da matemática no estudo da natureza enquanto tal. Já que as coisas são assim temos que aproveitar, devemos tentar encontrar relações matemáticas no cérebro humano, nos genes, na biologia e nas complexidades diversas da natureza.  É tudo o que podemos fazer.

Se isso é "pé-no-chão", então o que seria voar nas alturas das mais altas abstrações sobre a questão? Talvez tentar respondê-la e esclarecer o mistério?

Esse é o pensamento do cosmólogo Max Tegmark que foi apresentado no livro "Nosso Universo Matemático".  A resposta dele é que tudo que é matemático existe na realidade física, sem nenhuma exceção.

Não penso como Max Tegmark que tudo que é matemático existe, nem tampouco endosso o ponto de vista de Eugene Wigner que é melhor aceitar sem explicação que a natureza se expressa na linguagem matemática.

A matemática aplicada da Física possibilita a existência de organismos biológicos com sistema nervoso e possibilita a existência de redes neurais nos seres humanos que podem em tese conceber qualquer matemática. Alguns físicos teóricos podem entender razoavelmente bem a cadeia reducionista que apoia o argumento aqui esboçado.

Assim, uma matemática mais restrita parece permitir e fundamentar uma matemática geral de nível superior. E isso faz sentido? Um sistema formal menos rico pode gerar outro sistema mais fértil? Será que de uma forma mais tortuosa a Física pode ser a origem da matemática pura para a qual ainda não encontramos nenhuma aplicação? 
A Abstração das Partículas Elementares

As abstrações matemáticas são comparáveis as abstrações físicas, são duas faces da mesma moeda. Abstrair é ir desligando variáveis, essa é uma boa metáfora.

Cor, forma, sabor, odor, textura e demais propriedades macroscópicas de tecidos vivos e objetos manufaturados são propriedades qualitativas que vão se "desligando" conforme reduzimos as escalas, de células para moléculas, de moléculas para átomos e de átomos para partículas e seus campos quânticos de q-bits. 

Da mesma forma que entidades matemáticas, elétrons não tem outras propriedades a não ser as propriedades abstratas da mecânica quântica. As qualidades acidentais do mundo macroscópico do cotidiano se reduzem a uma rede lógica de relações necessárias na Física Teórica.

Sem cor, sem odor, sem sabor, sem individualidade. Um elétron é igual a qualquer outro, exceto pela diferença de alguns poucos números quânticos. Em termos informacionais, partículas elementares são entidades de baixa resolução.

O que significa isso? Significa que as qualidades da matéria macroscópica somem da sua descrição matemática para dar lugar a outras qualidades mais simples.

Existem inúmeros universos de brinquedo ou toys models que podemos construir dentro do nosso universo para refletir sistemas formais que descobrimos e não me refiro somente a idealização ou experimentos mentais. Estou me referindo a universos de brinquedo que são implementados fisicamente dentro do nosso universo, como o uso de DNA biológico como um dispositivo de memória para fotos, músicas e vídeos, por exemplo. 

Metáfora Mapa-Mundo

E seguindo esse raciocínio, bastante complicado de entender se não refletirmos sobre ele com atenção, a ilusão persistente que todos temos da possível existência de outros universos completos como o nosso, deriva da forma uno-múltiplo, entre o representado e a representação. 

Continuando na metáfora, essa forma expressa a diferença entre o mundo e a cartografia do mundo através de mapas. A existência de vários mapas cartográficos, com diferentes utilidades e aplicações, não tem o poder de criar por magia, territórios diferentes para cada mapa.

Invenção vs Descoberta

A física dos materiais artificiais ou metamateriais, bem como o recente campo da vida artificial desenvolvido por Craig Venter apontam numa direção, que estamos continuamente inventando matemática e inventando ciência para exercer domínio sobre a natureza. Por outro lado, descobrir como a natureza funciona envolve cooptar estruturas da matemática pura para uso no mundo real. 

Invenção ou descoberta? No contexto supra, a ciência e a matemática podem ser ambas. Porém, existiria um outro contexto mais esclarecedor?

Nos referimos à invenção como um conhecimento que parece vir de "lugar nenhum", enquanto podemos nos referir à descoberta como um conhecimento atualizado que parece vir de alguma fonte de conhecimento potencial. Como a vida artificial e os metamateriais artificiais devem obedecer as leis da física, percebemos claramente como os termos "artificial" e "natural" são enganosos e induzem ao erro, já que tudo é natural, sem exceção. 

Conforme os argumentos apresentados, toda a matemática e toda a ciência é descoberta, não inventamos coisa alguma em sentido estrito, isso faz parte da ilusão epistemológica.
A ilusão epistemológica

Os endereços de outros universos epistemológicos são apenas endereços de "casas e imóveis" que não estão lá. São mapas sem território correspondente, um efeito colateral do próprio formalismo matemático.

A ilusão de arbitrariedade da natureza é persistente, gerada pela nossa ignorância dos detalhes e pela falta de conhecimento de todas as variáveis e suas relações.

Logo, se a natureza não permite arbitrariedade ontológica em suas leis, então toda a nossa dificuldade em entender a natureza provem da ilusão epistemológica. Essa ilusão se expressa pela dificuldade que temos em enxergar que além do véu da aparente arbitrariedade da natureza se oculta uma essência de necessidade matemática.

Os desconhecidos desconhecidos não se manifestam junto das variáveis que conhecemos, criando a ilusão de que pequenas variações do que observamos empiricamente, produzem um resultado semelhante. 

A ilusão de que as leis da física podem mudar e mesmo assim produzir um universo diferente do nosso, deixando nosso próprio universo sem explicação, é gerada pela mesma ignorância. 

A ontologia é única, a epistemologia é múltipla. No meu entendimento, esse é o segredo da conexão oculta entre a Física e a Matemática. Se a arbitrariedade da natureza é ilusão, então o multiverso é epistemológico.

Glossário filosófico:

Desconhecidos Conhecidos 
Coisas que sabemos que desconhecemos.
Desconhecidos Desconhecidos
Coisas que ignoramos que desconhecemos.

Ontologia
Estudo das coisas, estudo do ser.
Epistemologia
Estudo das representações, estudo do conhecer.

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