Glossário Filosófico:
Contínuo - infinitamente divisível - suave - fluido
Descontinuo - finitamente divisível - seco - discreto
Na Física de vanguarda, poucos assuntos foram igualmente polêmicos ou mais instigantes ao longo dos séculos da nossa História do que a problemática contínuo Vs. descontínuo.
Desde os primórdios da física, que remontam a filosofia natural da antiguidade e aos pré-socráticos num passado mais remoto, a questão da continuidade do mundo era debatida, tanto com a proposta de Tales de Mileto que "Tudo é feito de água" ou com a proposta de Demócrito de Abdera de que "Tudo é feito de átomos e vazio".
A aparente continuidade da água também serviu como metáfora para o ápeiron (o infinito indiferenciado) de Anaximandro. Para esse filósofo, as coisas diferenciadas que surgem do ápeiron são aquelas que manifestam os atributos que estão ao alcance do intelecto humano. Poucos filósofos na época, poderiam sequer imaginar que até mesmo a água poderia ser composta de átomos, descoberta que levou a filosofia natural para um outro caminho científico e revolucionário.
Max Planck, em 1899, ao propor um sistema de unidades naturais para simplificar as diversas equações da física, foi o pioneiro responsável por abrir a porta para a teorização de uma escala microscópica de unidades naturais. Essas unidades radicais que puderam ser vislumbradas de forma incipiente na "lente mental" do puro intelecto são o que modernamente viemos a chamar de escala de Planck.
A massa de Planck, curiosamente, é a única unidade natural que fica na escala do cotidiano, valendo aproximadamente a massa de um grão de poeira. Todas as outras unidades de espaço, tempo e seus derivados se encontram fora do alcance da percepção humana, confinados num átomo espaço-temporal diminuto, mais ínfimo do que qualquer partícula elementar conhecida do modelo padrão.
Grandezas tão diversas como pressão, temperatura, densidade, força, massa, aceleração, velocidade, energia, momento linear, momento angular, volume, área, comprimento, duração, frequência e muitas outras combinações exóticas dessas citadas possuem um valor tabelado da constante que corresponde a sua respectiva fórmula dimensional.
Qual a importância dessas constantes que valem 1 (um)? Uma das especulações mais frutíferas é que elas são mínimos intransponíveis, isto é, as constantes representam o cutoff inferior de uma unidade de medida, as medidas exequíveis são múltiplos inteiros dessa unidade.
E reciprocamente, existem constantes que representam o cutoff superior de alguma grandeza que varia até um máximo e se detém, assim como a velocidade que "termina" na velocidade da luz. Outros exemplos menos familiares são os valores da força de Planck e da pressão de Planck que não podem ser ultrapassados em nenhuma circunstância.
Sabemos que a escala de Planck ganhou um destaque paradigmático que endossa o finitismo na ciência moderna, especialmente na física teórica, porém para que a Física Digital possa avançar é necessário fazer um escrutínio das constantes dimensionais e determinar quais são os intervalos de variação dos observáveis.
A física Emy Noether, em 1918, propôs um teorema chave da física matemática contemporânea, associando as correntes de cargas conservadas as suas respectivas simetrias nas coordenadas do movimento. A matemática utilizada por Noether foi a matemática contínua do cálculo diferencial e integral, onde os entes abstratos do cálculo são postos em correspondência com as quantidades mensuráveis e físicas do mundo real.
Desde que John Wheeller e Edward Fredkin especularam sobre a natureza da informação física lá nos anos 60, também era ventilado paralelamente o que seria conhecido como um dos argumentos mais fortes já elaborados contra o espaço-tempo discreto e a natureza descontínua da realidade. O argumento conhecido tacitamente pela expressão "simetrias são contínuas" afirmava que as simetrias imbricadas no Teorema de Noether são incompatíveis com um universo discreto em nível ontológico, pois os teoremas foram formulados nativamente na matemática contínua.
Ora, esse argumento supostamente robusto contra a Física Digital se revelou um argumento frágil que tende a se tornar cada vez mais um argumento datado, como muitos outros que foram tecidos contra a descontinuidade. Em trabalhos recentes realizados por físicos teóricos, há uma grande variedade de artigos que conciliam de forma notável o espaço-tempo discreto com as simetrias do Teorema de Noether[1].
Portanto, não apenas é possível conciliar a descontinuidade com as correntes de carga que se conservam no Teorema de Noether, como o próprio "palco" onde essas correntes são conservadas pode manter seu status ontológico de um espaço-tempo discreto.
A computação quântica, que opera através do bit quântico ou q-bit num espaço de Hilbert contínuo parece ser o aceno mais forte para não duvidarmos da continuidade da natureza, mas este pode ser apenas mais outro aceno delusivo na direção errada. Vários computadores quânticos com engenharias diversas foram construídos no século 21, embora a grande maioria são protótipos que permanecem em "estado-de-arte", com poucos algoritmos quânticos adaptados ao hardware.
O espaço vetorial de Hilbert da mecânica quântica é em tese um espaço vetorial infinidimensional, onde os vetores de onda |Ψ> ou Kets existem. Na correspondência matemática entre funções contínuas e vetores, cada valor numérico da imagem da função faz o papel do valor da amplitude do vetor sobre uma dimensão válida do Ket.
Sabemos que a riqueza do espaço vetorial de Hilbert da forma que é compreendida e utilizada hoje é importante para toda a ciência e para as tecnologias que virão no futuro, mas podemos dizer com certeza que tal espaço é contínuo?
Essa certeza não existe, como podemos verificar no artigo "Is Hilbert Space discrete?"[2]. No final do artigo os autores reconhecem honestamente que é difícil de argumentar contra a continuidade do espaço de Hilbert da mecânica quântica, contudo a recomendação dada para os experimentalistas é que mantenham a mente aberta sobre a possibilidade dele ser discreto mesmo antes da escala de Planck.
Quanto a isso, estou em sintonia com a ideia que a natureza discreta do espaço de Hilbert pode ser comprovada no futuro mediante a aplicação de uma heurística da Física Digital. O artifício de pensamento se baseia na sugestão de que qualquer continuidade aparente pode ser simulada num computador que seja suficientemente poderoso para processar a alta quantidade de informação necessária.
Para duas teorias quânticas concorrentes que pretendem descrever a realidade, uma com espaço de Hilbert discreto e outra com espaço de Hilbert contínuo, podemos afirmar que ambas serão equivalentes se fornecerem os mesmos resultados dentro do limite de precisão dos melhores instrumentos de medida e dos melhores computadores que executam os algoritmos da física subjacente.
O conceito de "máquina" e em especial o de máquina de Turing se refere a um um ente abstrato que pode ser implementado fisicamente de modo finito, isto é, que não requer recursos infinitos para existir. Assim, o constructo teórico "fita infinita" do artigo original de Turing se torna uma memória RAM de trabalho finita e etc. O mesmo vale para qualquer módulo computacional que seja construído, a engenharia da computação impõe severas limitações à matemática que lhe dá suporte, sendo a finitude a limitação mais importante e evidente. Concluímos que a Física Digital segue filosoficamente e cientificamente a visão de mundo finitista, não sendo a alternativa - Uma Física Digital Infinitista - nem plausível e nem consistente com a ciência vigente nos dias de hoje.
Indo além, as ambições científicas que pretendem unificar a mecânica quântica, onde os fenômenos descontínuos se impõem por si, com a teoria da Relatividade Geral, onde impera o constructo teórico do continuum espaço-temporal; só deixarão de ser vãs elucubrações e terão algum fundamento, quando questionarmos o infinitismo dogmático do próprio conceito de continuum espaço-temporal.
Bibliografia:
[1] - Discrete Noether Currents
https://arxiv.org/pdf/1405.1409.pdf
[2] - Is Hilbert space discrete?
https://arxiv.org/pdf/hep-th/0508039.pdf
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